O sol nascente surpreendeu-os a meio caminho do alto da serra, já bastante afastados da albergaria, de onde tinham saído no romper da madrugada. Uma chuva miudinha e persistente como um lençol que se colava às faces envolvia-os desde o couço, toldando as larguras e comprimentos da estrada mal definida na claridade quase inexistente. Notavam-se algumas formas na borda do caminho, rochas enormes e outras mais baixas, alguns arbustos, outra vez um grande maciço rochoso, e em determinado ponto, quando a estrada estreitou para seguir encostada a uma escarpa, a rocha viva acompanhou-os sempre até ao topo, enquanto do lado do levantar do sol se adivinhava um abismo escuro de onde vinha o resfolegar de águas vivas.
O horizonte clareava-se na barra densa de nuvens e o homem caminhava atrás da mula, guiando-se no escuro pela intuição dela, liberta das rédeas que ele agora carregava. Venceram a subida para receber um vento inclemente gelado e em determinado ponto, quando a estrada estreitou para seguir encostada a uma escarpa, a rocha viva acompanhou-os sempre até ao topo, enquanto do lado do levantar do sol se adivinhava um abismo escuro de onde vinha o resfolegar de águas vivas. O homem caminhava atrás da mula, guiando-se no escuro pela intuição dela, liberta das rédeas que ele agora carregava. Venceram a subida para receber um vento inclemente gelado que varreu as nuvens e deixou-os de repente com toda a coroa da montanha diante deles, as rochas cercadas do verde das ervas da primavera. Na encosta oposta aquela por onde tinham subido, a estrada desfiava-se num meandro longo até desaparecer entre o tapete das nuvens que avançavam numa crista de neblina para cobrir tudo novamente.
O homem conduziu a mula até a um pradinho e deixou-a pastar livremente. Retirou do alforge algum pão e o queijo que lhe dera a mulher na albergaria, que comeu com apetite. O queijo esfarelava-se na boca em contacto com os dentes. Já saciado, guardou o pão e queijo junto aos figos e segurou a bota acima da cabeça, e esguichou o vinho para a boca, parecendo-lhe mais adocicado do que o costume, talvez pelo salgado do queijo. Deu outro gole para lavar a boca e arrolhou a bota. De um saco de pele retirou cuidadosamente um punhado de sal, que levou até à mula de palma aberta. Esta, ao vê-lo chegar, levantou a cabeça e deu duas passadas em diante, até conseguir alcançar a mão e lamber o sal da palma, enquanto ele lhe afagava a crina com a outra mão. Deixou-a pastar e foi-se sentar numa das rochas mais baixas junto ao pradinho, puxando o capote mais para a nuca quando sentiu o fragor próximo de um aguaceiro trazido pelo vento. A chuva cessou logo.
Procurou no casaco o osso com que ensaiara o apito na véspera, encontrando-o na algibeira por cima do peito. Mas partira-se na ponta, esmagado. Pelo próprio peso, pensou, quando se deitara por cima do capote no catre. Procurou na manga a bainha dura onde guardava um outro osso, mais comprido, verificando com satisfação e alívio que se achava inteiro. Retirou-o com cuidado da manga do capote e do seu oco tubular e poroso removeu um outro osso. Este era bem mais estreito e elegante, de cor amarelada, onde se viam os orifícios de espaços desiguais próprios das flautas feitas em osso de asa de abutre.
Apontou a ponta da boquilha com a incisão para a boca, mas um som vindo do seu lado esquerdo fê-lo voltar a cabeça para lá. Era um raposo de bom tamanho, com pelo escuro e reluzente da humidade e de gola fulva mais farta junto ao pescoço, trotando junto às pedras disformes que cercavam o pradinho, do lado oposto à estrada. Ele dirigia-se para o lugar onde homem estava sentado e quando o viu, estacou e ficou imóvel a olhar para ele. O homem permanecia com a flauta à altura da boca. Voltou a cabeça para diante, apertou suavemente a flauta nos lábios e quando achou a posição certa, começou a tocar uma melodia vagarosa que se misturava com o vento.
Fechou os olhos como era o seu costume quando tocava, e imaginou as rochas, as nuvens, o vento e a estrada, até sentir o odor almiscarado do raposo que se deitara junto à rocha onde ele se sentara. Procurou nas notas mais graves uma ressonância mais telúrica, mais próxima dos sons do vento nas rochas, a adejar nas urzes e no pelo do raposo. Baixou o timbre até conseguir tirar da flauta um assobio quase como a água. Começou a ouvir, tal como desejava, os pensamentos do animal, reconhecendo três crias e uma fêmea metidos num covil não muito longe dali, o sabor a coelho capturado e escondido durante a noite, o sangue ainda nos bigodes, o rasto labiríntico de toupeiras, ratos, coelhos, javalis, doninhas e o cheiro terrível e azedo dos lobos.
O homem parou de tocar e olhou para o raposo deitado a seus pés que o mirava de volta de modo interrogativo. Fitaram-se algum tempo até que o raposo se levantou, abriu as mandíbulas de dentes grandes e pontudos, fechando os olhos expressivos num bocejo como se fosse dizer algo, e saiu correndo junto ao caminho. Uma centena de passos adiante parou e voltou-se para trás, deitando uma última mirada ao homem, desaparecendo depois na lomba da encosta.
Uma rajada aventou-se mais forte, zunindo nas urzes e estevas como um suspiro áspero, e o homem voltou a fechar os olhos devolvido à solidão e aos sons da terra. Pensou nos lobos e como estes cruzavam este ponto da serra - era uma passagem tão mais fácil para os viajantes da estrada quanto aos animais - e do perigo que tanto ele quanto a mula carriça corriam. O raposo temia profundamente a alcateia e assim ele a deveria temer ou respeitar.
Ele levantou-se e foi meter os arreios na Carriça que bebia despreocupadamente num charco na parte baixa do pradinho. Quando o viu aproximar-se, chegou-se-lhe com o pescoço, deixando-o afivelar as tiras de couro. Ele certificou-se que nenhuma delas estava muito cingida, passando um dedo entre elas e a pele do animal. Atirou-lhe a rédea para cima do lombo e dirigiu-a para a pedra onde estavam pousados os alforges. Fechou-os e alombou-os no dorso da carriça. Voltaram à estrada que descia sinuosa e por onde o vento lhe trazia o uivo dos lobos. A mula levantou as orelhas e fez um movimento para estacar, mas recebeu uma palmada de incentivo e lá continuou a caminhar num passo nada vagaroso, encaixando as patas nas lajes grandes e húmidas da estrada. O homem seguia-a.
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