Quando o sino toca numa sineira de igreja e soa acima da cabeça dos homens, como uma voz de Deus, um trovão dos céus ou um piado de mocho, anuncia aos vivos novidades tristes, exceto no repique de festa. Tocando na terra é mau prenúncio. Vindo o som de longe, traz o sentido do vento e do tempo, e a constatação de haver mais mundo à volta destas paragens, outros cerros, outras leiras, outros trabalhos, outras gentes, outras vidas. Quando toca um sino ou sinos, havendo mais no campanário, os homens levantam a cabeça para melhor escutar o seu lamento metálico. Mesmo nas alturas festivas em que se repicam sinos, sendo os mesmos sinos e o mesmo bronze esverdeado, soa sempre a lamento metálico. A diferença reside na quantidade de voltas que o sineiro o fará dar sobre o eixo. Estão as gentes em suas casas, eidos, palheiros e tugúrios, abrigados da chuva cada vez mais intensa, ouvindo o tocar do sino. Chove. A tarde faz-se curta e de pouca luz, os homens adivinham o toque fúnebre pelo tanger do sineiro que puxa as cordas de badalos e martelos com as cadências bem conhecidas. Enquanto isso dura, todos esperam o toque que lhes dirá se homem, se mulher, se padre, se criança ou se rei se finara. E enquanto o sino não lhes dá certezas, vão pensando em quem anda suficientemente doente ou velho para ter morrido, ou meditando no infeliz acaso de sucesso de acidente fatal. Está agora a chuva colada numa neblina tão densa que mal vai coando o lamento do sino, e os homens mal se apercebem de um toque, dois toques, três toques no entremez dos rebates à defunta, pois era mulher quem outrora vivia e de quem agora se anunciava ter-se extinguido. Mal o sino estacou na torre e o badalo ainda não se imobilizara, já cada um dos confrades das almas saía de casa e se preparava para encontrar o juiz para desempenharem a função de oficiar o mortório. São quatro os confrades que se vão chegando diante da casa do juiz e se abrigam das goteiras caindo generosamente das telhas uns palmos acima das suas cabeças. Cumprimentam-se em silêncio, descobrindo por momentos as cabeças calvas ou grisalhas, como se o olhar respeitoso e as vénias já fizessem parte dos rituais fúnebres que se seguiriam. Estando todos presentes, bateu-se à porta do juiz que vestindo sobretudo e empunhando a vara, saiu para o terreiro e para a noite. Os homens seguiram o juiz pela rua estreita, encolhendo-se nos capotes e nos chapéus, ouvindo-se chapinhar a lama sob os pés. O caminho descia em curva para a capela das almas, onde a confraria reunia, e as paredes baixas do casario mal se divisavam na penumbra, tendo o violáceo das nuvens baixas tornado em breu pouco menos escuro que o carvão, pelo brilho baço que a chuva agora menos persistente dava à noite. Apesar dessa treva, à passagem diante de um vão fundo, um dos confrades, por sinal o mais circunspecto e respeitador da função, de quem se diz ser o sucessor do juiz da confraria e desdenhado por esse motivo, teve a impressão de sentir uma presença encostada à madeira de uma porta. Fora uma impressão fugaz, e ele logo se despreocupou disso, mas pareceu-lhe ver uma figura imóvel, coberta por um manto de burel negro, resguardada na sombra diminuta do seu meio corpo, adivinhando-se debaixo do capuz uns olhos vivos de coruja. A uns quantos passos da fachada branca da capela estacaram a deixar passar o rebanho de uma das vezeiras que regressava tardio do pasto. Ficaram envolvidos na massa movente de balidos e chocalhos das cabras que saltavam umas por cima das outras, de latidos de cães e assobios do pastor que passou por eles reverente, descobrindo-se da cabeça, retorquindo-lhe a confraria do mesmo modo. O confrade seguiu com curiosidade o pastor rua acima, e à frente do rebanho ia um vulto pouco mais alto que o bode grande, dele mal distinto pelo manto escuro. No alto da curva voltou-se para trás e revelou dois furos vermelhos fulgurantes no breu da noite, logo desaparecidos num bater do coração. O confrade encolheu-se na roupa com um arrepio, como se fosse trespassado pela fúria daqueles olhos, benzendo-se com a mão trémula para aliviar o temor. O homem suspirou fundo em silêncio, para não se denunciar à companha. Pastor e rebanho desapareceram tal como surgiram. A confraria subiu os três degraus até à porta da capela e o juiz abriu o portal pesado, munido com a chave que trazia ao peito. Os seus companheiros entraram para o nave tão escura quanto bafienta e acenderam com a precisão costumeira, os quatro círios grossos colocados ao centro, iluminando progressivamente o grande altar das almas na cabeceira. Chegara o sacerdote ao umbral do portal, e pedindo a licença ao juiz, entrou. Em todos os rituais há regulamentos imemoriais que passam de geração em geração que foram feitos para a função do instituto, uns melhor acabados que outros, mas o da confraria das almas é um dos mais perfeitos. A jurisdição do pároco, superior a todos na vida religiosa aldeã, cessa no umbral da capela, por serem ali todos as almas iguais na morte. Daí ter de pedir permissão ao juiz. Mas não é este quem autoriza, mas ele por todos os confrades e almas que representa. O sacerdote irá acompanhar a abertura dos cofres da confraria e velar o traslado do nome da defunta do livro dos irmãos para o assento no livro das almas. Uma vez acesos os círios, estarão abertas as portadas da capela em contínuo até o préstito fúnebre abandonar o templo no dia seguinte, cerrando-se para aguardar o próximo extinto e o seu ofício. A luz baça que se derrama para a rua e mal cai além dos degraus vai manter-se acesa durante todo esse tempo. Acredita-se nesta terra na desorientação das almas separadas do corpo pelo passamento e as luminárias da capela mantêm-se acesas pelo imperativo dos estatutos, servindo de farol às mais aventureiras, tresmalhadas, perdidas ou penadas. Acredita-se e está consagrado nos mesmos estatutos, ser imperativo internar-se a alma no corpo no momento da sepultura, porque só aí se poderá apresentar ao tribunal do Altíssimo. Chama-se expiação a este tempo de deambulação e nada é mais perigoso aos vivos. Evitam estes o encontro com aquelas permanecendo dentro de portas fechadas, sabendo-se as almas impedidas de abrir ferrolhos, ou percorrendo as ruas e caminhos da povoação por motivos imprescindíveis em grupos nunca menores de três indivíduos, por ser impossível à alma distinguir mais do que dois vivos. A outra condição é manter-se o silêncio durante a expiação. Esta regra não será quebrada por este que aqui vai subindo a ladeira curva, enquanto na capela o barulho dos ferrolhos do cofre da confraria ressoa nas cinco voltas da chave rodada pelo juiz, os gonzos da porta de chapa cravada chiam a pedir sebo debaixo do altar da justiça, aberta para a retirada dos três livros de assentos e a caixa da moeda. Abertos os livros sobre o altar e trasladado o nome defunto dos irmãos para as almas, o juiz inscreve no assento do conto a despesa com o sepultamento: os honorários do padre, acólitos e sete carpideiras para o acompanhamento; uma arroba de bacalhau salgado, uma ceira de figos e três canadas de aguardente para o velório; um arrátel de cera; uma mortalha de linho; o aluguer do ataúde de bucho; e o aluguer de um burro para o carrego do féretro. Alheio aos artifícios e preparativos da confraria, desrespeitando as suas regras escritas e não escritas, circulando sozinho fora de portas na noite dos perigos mais perigosos, perseguindo sem o saber o trilho daquele vulto de olhos ígneos, vai este meio vulto de rapaz de olhar solitário empunhando uma gaiola.
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